Orientação ao Farmacêutico - Boa noite, Cinderela!
Data de publicação: 18 de fevereiro de 2025
Com a proximidade das festividades do Carnaval, há a necessidade da vigilância quanto a golpes, como o famoso “Boa noite, Cinderela*”, no qual criminosos introduzem, secretamente, substâncias em bebidas ingeridas pela vítima, o que leva a um estado de consciência alterado, podendo ocorrer entorpecimento e amnésia anterógrada, quando o paciente não lembra do que aconteceu recentemente.
Sob a influência dessas substâncias, a vítima, vulnerável e incapaz de se defender, pode sofrer roubos, maus-tratos ou até violência sexual.
Na maioria das vezes, as substâncias (depressoras do Sistema Nervoso Central - SNC) são adicionadas a bebidas alcoólicas, uma vez que, dessa forma, a depressão no SNC é potencializada.
Não há uma substância específica usada nesses casos, podendo ser drogas ilícitas (como cocaína, metanfetamina) ou medicamentos.
Os principais medicamentos são sedativos, hipnóticos e tranquilizantes, que geralmente não apresentam cor, gosto ou odor e dissolvem rapidamente quando misturados a uma bebida.
A sequência de posts apresenta os principais medicamentos utilizados pelos criminosos neste tipo de golpe, além de medidas que o farmacêutico pode repassar a seus pacientes para sua prevenção.
Benzodiazepínicos:
São utilizados como ansiolíticos, sedativos, hipnóticos, anticonvulsivantes e/ou relaxantes musculares.
O mecanismo de ação é o mesmo para toda a classe: Potencialização do ácido gama-aminobutírico (GABA), um neurotransmissor inibitório, por conta da ligação do benzodiazepínico a um sítio específico do receptor GABAA
O benzodiazepínico mais citado, nas literaturas consultadas, utilizado pelos criminosos em golpes como o “Boa noite, Cinderela” |
Propriedades farmacocinéticas (uso oral):
Pico concentração plasmática |
Meia-vida de eliminação |
|
Flunitrazepam |
0,75 – 2 horas |
0,75 – 2 horas |
Clonazepam |
1 – 4 horas |
1 – 4 horas |
Diazepam |
0,5 – 2 horas |
0,5 – 2 horas |
Midazolam |
0,5 hora |
0,5 hora |
As principais reações adversas dos benzodiazepínicos incluem sonolência, ataxia, fadiga, confusão, fraqueza, tontura e síncope. Além disso, podem causar efeitos amnésicos, principalmente amnésia anterógrada.
Quando utilizados em doses acima das recomendadas, pode ocorrer prejuízo na coordenação, fala arrastada, confusão, coma e diminuição dos reflexos.
São medicamentos da Lista das Substâncias Psicotrópicas (B1) da Portaria SVS/MS nº 344/1998 e só podem ser dispensados mediante retenção de Notificação de Receita “B” (cor azul), acompanhada da receita.
Imidazopiridinas (Z-drugs):
São usados no manejo em curto prazo da insônia.
O mecanismo de ação é o mesmo para toda a classe: Modulação do receptor GABAA após ligação a sítio específico da subunidade alfa-1 do ácido gama-aminobutírico (GABA), com consequente
aumento da frequência de abertura do canal de cloreto e inibição da excitação neuronal.
Os hipnóticos-sedativos dessa classe, muitas vezes usados em golpes por criminosos, incluem zaleplona, zolpidem, eszopiclona e zopiclona. |
Propriedades farmacocinéticas (uso oral):
Pico concentração plasmática |
Meia-vida de eliminação |
|
Zaleplona |
1 hora |
1 hora |
Zolpidem |
1,6 horas |
2 – 2,6 horas |
Eszopiclona |
1 hora |
6 horas |
Zopiclona |
1,5 – 2 horas |
5 horas |
As reações adversas tendem a estar relacionadas à dose utilizada; as mais comuns, quando usados em curto prazo, incluem sonolência e tontura.
Também estão associados ao seu uso: amnésia, quedas e comportamentos complexos do sono (como sonambulismo ou a prática de outras atividades que o paciente não se recorda).
Pertencem à Lista das Substâncias Psicotrópicas (B1) da Portaria SVS/MS nº 344/1998 e só podem ser dispensados mediante retenção de Notificação de Receita “B” (cor azul), acompanhada da receita.
Anti-histamínicos:
A histamina é um transmissor que está envolvido na regulação do ciclo sono-vigília, apetite, sede, reflexo do vômito, acidez gástrica, temperatura corporal, memória e aprendizado. Receptores de histamina H1 são mais comuns no Sistema Nervoso Central (SNC) e produzem efeitos excitatórios.
O mecanismo de ação é o mesmo para toda a classe: Anti-histamínicos são antagonistas de receptores H1, além de bloquearem receptores muscarínicos, serotoninérgicos e adrenérgicos.
Exemplos de anti-histamínicos usados em golpes por criminosos incluem cetirizina, clorfeniramina, difenidramina, doxilamina e hidroxizina. |
Propriedades farmacocinéticas (uso oral):
Pico concentração plasmática |
Meia-vida de eliminação |
|
Cetirizina |
0,5 – 1 hora |
7,4 – 9 horas |
Clorfeniramina |
2 horas |
20 horas |
Difenidramina |
2 – 4 horas |
3,3 – 15 horas |
Doxilamina |
2 – 2,4 horas |
10 – 13 horas |
Hidroxizina |
2 horas |
3 – 20 horas |
O efeito adverso mais comum dos anti-histamínicos sedativos é depressão do SNC, com efeitos que incluem sedação (que varia entre leve a profunda), tontura, fadiga e descoordenação motora. Outras reações comuns estão relacionadas com seus efeitos antimuscarínicos, como boca seca, visão borrada, retenção urinária e constipação.
Opioides:
Mecanismo de ação: Os analgésicos opioides agem sobre receptores µ, δ e , fazendo com que a liberação de transmissores nociceptivos (como a substância P) seja inibida.
Alguns agonistas opioides utilizados em golpes como “Boa noite, Cinderela” são codeína, metadona, morfina e oxicodona. |
Propriedades farmacocinéticas (uso oral):
Pico concentração plasmática |
Meia-vida de eliminação |
|
Codeína |
1 – 2 horas |
3 horas |
Metadona |
1 a 7,5 horas |
13 – 47 horas |
Morfina |
0,9 horas (liberação imediata) |
2 horas |
Oxicodona |
3 – 5 horas |
4,5 horas |
Reações adversas de opioides no Sistema Nervoso Central (SNC) incluem tontura, distúrbios visuais, depressão ou turvação mental, sedação, coma, euforia, disforia, fraqueza, desmaio, agitação, inquietação, nervosismo, convulsão.
O uso concomitante de opioides com álcool pode resultar em sedação profunda, depressão respiratória, coma e morte.
Metadona e morfina fazem parte da Lista das Substâncias Entorpecentes (A1) da Portaria SVS/MS nº 344/1998 e só podem ser dispensadas mediante retenção de Notificação de Receita “A” (cor amarela), acompanhada da receita. Oxicodona também pertence à Lista “A1”, porém, de acordo com o adendo, preparações medicamentosas na forma farmacêutica de comprimidos de liberação controlada à base de oxicodona, contendo não mais que 40 miligramas dessa substância, por unidade posológica, ficam sujeitas a prescrição em Receita de Controle Especial, em 2 (duas) vias.
Codeína pertence à Lista das Substâncias Entorpecentes de uso permitido somente em concentrações especiais (A2) da Portaria SVS/MS nº 344/1998. Segundo adendo, preparações à base codeína, inclusive as misturadas a um ou mais componentes, em que a quantidade de entorpecentes não exceda 100 miligramas por unidade posológica, ficam sujeitas a prescrição da Receita de Controle Especial, em 2 (duas).
Clozapina |
É o protótipo dos antipsicóticos atípicos. Possui propriedades bloqueadoras alfa-adrenérgicas, antimuscarínicas, anti-histamínicas, antiserotoninérgicas e sedativas. |
Haloperidol |
Antipsicóticos típicos são antagonistas de receptores D2 de dopamina, tendo efeito inibidor sobre volição e atividade motora. |
Fenobarbital |
Barbitúricos possuem a habilidade de melhorar a atividade do ácido gama-aminobutírico (GABA), um neurotransmissor inibitório. São usados como sedativos, hipnóticos, ansiolíticos, anestésicos ou anticonvulsivantes. |
Clozapina e haloperidol fazem parte da Lista de Outras Substâncias a Controle Especial (C1) da Portaria SVS/MS nº 344/1998, devem ser dispensadas mediante retenção de Receita de Controle Especial, em 2 (duas). Embora fenobarbital pertença à Lista das Substâncias Psicotrópicas (B1) da Portaria SVS/MS nº 344/1998, o adendo descreve que os medicamentos que contenham fenobarbital ficam sujeitos a prescrição da Receita de Controle Especial, em 2 (duas) vias.
Medidas de prevenção:
- Não deixar bebidas sem vigilância;
- Não aceitar bebidas de desconhecidos;
- Beber de garrafas e latas com tampas invioláveis e abertas pela própria pessoa que irá consumir;
- Não compartilhar ou trocar bebidas;
- Não beber de recipientes que estejam sendo passados de mão em mão.
MEDICAMENTOS NÃO DEVEM SER MISTURADOS COM BEBIDAS ALCOÓLICAS! |
Referências (disponibilizadas somente no site):
MERATIVE. Merative™ Micromedex® Drugdex®. Electronic version. Ann Arbor, Michigan: Merative. Disponível em: <http://www.micromedexsolutions.com>. Acesso em 10 fev. 2025.
SWEETMAN, S.C. (Ed). Martindale: The Complete Drug Reference. London: The Royal Pharmaceutical Society of Great Britain. Electronic version. Ann Arbor, Michigan: Merative. Disponível em: <http://www.micromedexsolutions.com>. Acesso em 10 fev. 2025.
COBAUGH, D.J. (Ed). AHFS Drug Information. Bethesda: American Society of Health-System Pharmacists, 2024.
DIPIRO, J.T. et al. DiPiro’s Pharmacotherapy: A Pathophysiologic Approach. 12. ed. New York: McGraw-Hill, 2023.
FUCHS, F.D.; WANNMACHER, L. Farmacologia Clínica e Terapêutica. 5. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2017.
BRUNTON, L.L.; KNOLLMAN, B. Goodman & Gilman’s the pharmacological basis of therapeutics. 14. ed. New York: McGraw-Hill, 2023.
BRASIL. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Consultas. Bulário Eletrônico. Disponível em: <https://consultas.anvisa.gov.br/#/bulario/>. Acesso em 14 fev. 2025
BRASIL. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Resolução RDC 958, de 31 de dezembro de 2024. Dispõe sobre a atualização do Anexo I (Listas de Substâncias Entorpecentes, Psicotrópicas, Precursoras e Outras sob Controle Especial) da Portaria SVS/MS nº 344, de 12 de maio de 1998. Diário Oficial da União, Brasília, 03 jan. 2025.
SKOV, K. et al. A review on the forensic toxicology of global drug-facilitated sexual assaults. Eur Rev for Med Pharmacol Sci., v. 26, p. 183-197, 2022. Disponível em: <https://www.europeanreview.org/wp/wp-content/uploads/183-197.pdf>. Acesso em 10 fev. 2025.
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MEJÍA-MÉNDEZ, M.G.; et al. Portable miniaturized IoT-enabled point-of-care device for electrochemical sensing of zopiclone in cocktails. Biosensors (Basel), v. 14, n. 11, 16 nov. 2024. Disponível em: <https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC11591615/>. Acesso em 06 fev. 2025.
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ZEIND, C.S. et al. Applied therapeutics. The clinical use of drugs. 12. ed. Philadelphia: Wolters Kluwer, 2024.
*os efeitos dos medicamentos citados variam de acordo com o paciente (idade, sexo, condições clínicas), fármaco, dose, forma farmacêutica.
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17 de março de 2025